segunda-feira, 12 de maio de 2014

Poemas de Egénio de Andrade

Caixa de texto:  O poeta é incapaz de conter um segredo, acaba sempre por dizer no poema aquilo que queria  guardar para si  .  
-Eugénio  de  Andrade
O poeta é incapaz de conter um segredo, acaba sempre por dizer no poema aquilo que queria  guardar para si  . 

-Eugénio  de  Andrade


 
É urgente o amor
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.  

 
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
 eu sei que traí, mãe
 Tudo porque já não sou
 o retrato adormecido
 no fundo dos teus olhos.
 Tudo porque tu ignoras
 que há leitos onde o frio não se demora
 e noites rumorosas de águas matinais.
 Por isso, às vezes, as palavras que te digo
 são duras, mãe,
 e o nosso amor é infeliz.
 Tudo porque perdi as rosas brancas
 que apertava junto ao coração
 no retrato da moldura.
 
 Se soubesses como ainda amo as rosas,
 talvez não enchesses as horas de pesadelos.
 Mas tu esqueceste muita coisa;
 esqueceste que as minhas pernas cresceram,
 que todo o meu corpo cresceu,
 e até o meu coração
 ficou enorme, mãe!
 Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
 que adormeceu nos teus olhos;
 
 ainda aperto contra o coração
 rosas tão brancas
 como as que tens na moldura;
 ainda oiço a tua voz:
           Era uma vez uma princesa
           no meio de um laranjal...
 Mas — tu sabes — a noite é enorme,
 e todo o meu corpo cresceu.
 Eu saí da moldura,
 dei às aves os meus olhos a beber,
 Não me esqueci de nada, mãe.
 Guardo a tua voz dentro de mim.
 E deixo-te as rosas.
 Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"